Na madrugada de 20 de julho, Rafael Mascarenhas, de 18 anos, filho da atriz
Cissa Guimarães, foi abandonado por Rafael Bussamra, que o atropelou no
Túnel Acústico, na Gávea, interditado na ocasião pela prefeitura para
circulação de carros. O fato chamou atenção do público pela tragédia em si,
mas também pelo episódio de corrupção praticada pela família do atropelador,
que pagou R$ 1 mil a policiais que pararam o carro logo após o acidente.
Essa história aconteceu no Rio de Janeiro e serviu como pano de fundo para o
debate sobre ética que a ONG Junior Achievement promoveu, na semana passada,
com apoio do GLOBO e do EXTRA. Três dos quatro debatedores convidados
fizeram referência ao caso como um exemplo de escolhas éticas com as quais
esbarramos no cotidiano.
"Alguém aqui chamaria a polícia em vez de ligar para os pais?", provocou o
antropólogo Roberto da Matta ao comentar a reação de Bussamra.
- Em qualquer outro país do mundo, a primeira ligação seria para a polícia,
mas aqui, não só não acreditamos na polícia, como há uma prática de subornar
para escapar das regras da lei - disse o antropólogo.
Num contexto mais amplo, a discussão do encontro, mediado pela editora do
Razão Social, Amelia Gonzalez, girou em torno do dilema que enfrentamos para
optar por soluções mais sustentáveis em prol da preservação da vida no
planeta. Foi o tom da fala de Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos,
para quem "ética é a forma com que se age, é o que determina nossas
escolhas". Para ele, a questão que se impõe hoje é decidirmos se vamos ou
não acreditar nos cientistas: - Eles nos dizem que, se não mudarmos nossa
forma de viver, a espécie humana corre o risco de ser extinta neste século.
O que está em jogo, então, são os nossos filhos, netos. Hoje, o crescimento
é sem limites e a cultura é da competição. Somos diferentes de outros seres
vivos, a nós foi dada a faculdade de fazer escolhas. E fazer escolha é
ética - disse Grajew.
O antropólogo Roberto da Matta e a mestra em ciência da informação e
fundadora da empresa X-Brasil Marta Porto trouxeram também para o debate
situações em que nos deparamos com nossos limites éticos no cotidiano. Autor
do recém lançado livro "Fé em deus e pé na tabua", Da Matta citou a conduta
no trânsito como exemplo da incoerência praticada pelo brasileiro
diariamente.
- Quando estamos parados no sinal e precisamos, por exemplo, pegar um avião,
achamos que nosso motivo é suficiente para cometer a infração de avançá-lo.
No Brasil não temos falta de ética, mas sim muitas éticas: uma da família,
uma do homem, uma da mulher etc. Não há uma única ética permeando espaços
públicos, como o trânsito, que deixe os indivíduos em igualdade de
condições. Quando alguém respeita a lei, temos que achá-lo um herói e não um
babaca - comentou Roberto Da Matta.
Para ele, a consequência de uma sociedade que convive com tantas éticas
chegou ao limite no caso do atropelamento com morte de Rafael Mascarenhas.
Da Matta diz que o que valeu, neste caso, foi uma ética da família.
- O rapaz que atropelou não ligou para a polícia, mas para o papai e a
mamãe.
O caso também foi emblemático para a jornalista Marta Porto, uma das
criadoras do primeiro escritório da Unesco no Rio de Janeiro. Para ela, o
principal debate dessa história trágica não tem a ver com o pagamento da
propina aos policiais, mas com a ausência de indignação, tanto da família do
atropelador quanto da sociedade.
- Não é a discussão da propina que me interessa. É o silêncio daquele grupo
de pessoas que participou da ação. A escolha ética surge no momento em que,
após atropelar uma pessoa no túnel, opta-se por abandoná-la no local em vez
de fazer algo para que a pessoa não morra e arcar com as consequências. A
possibilidade da ética reside no espaço entre o sujeito pensar e fazer -
disse.
É a falta de sentimentos primários entre os sujeitos que hoje, na opinião
dela, permite que atitudes contrárias ao bem comum sejam praticadas. Marta
diz que atualmente nos faltam "afetos" no sentido de sabermos o que toca
cada um de nós: - Sem sentimento, não há ética. A pessoa precisa ter, em
primeiro lugar, um afeto que pode ser o senso de justiça, a vergonha ou o
remorso. Uma sociedade que perde a sua capacidade de indignação não é capaz
de despertar esses sentimento iniciais e tornase um perigo. Como despertamos
o afeto em uma sociedade que cada vez mais se silencia diante de questões
pequenas, médias e grandes. A passividade, o tédio e o silêncio não são
atitudes éticas. A sociedade brasileira está diante de um desafio que é
tratar as situações com a dimensão afetiva que deveria ter se quiser
realizar mudanças - falou a jornalista.
Oded Grajew acredita, porém, que qualquer movimento de transformação social
deve passar, necessariamente, pelas corporações, já que nelas reside o
poder.
- Quem manda hoje no Brasil são as empresas, por isso qualquer tipo de
mudança tem que passar pelo mundo empresarial. Elas têm recursos
financeiros, tecnológicos e poder político.
Se não mexermos neste sistema, nada vai mudar. O financiamento de campanhas
nas eleições, por exemplo, precisa mudar, pois cerca de 70% a 80% vêm de
caixa dois de empresas que não querem declarar o investimento.
A maioria dos políticos são representantes de empresas que financiam suas
campanhas. Quando são eleitos, não pensam nas necessidades da população mas
em retribuir aos financiadores - apontou Grajew a uma plateia atenta de
cerca 60 pessoas.
O empresário ressaltou ainda que atualmente não faltam ferramentas para uma
empresa agir de maneira ética e sustentável.
Para Grajew, é fundamental que os gestores reflitam a serviço de quê estão
trabalhando e direcionando seus talentos.
Toda decisão deve, antes, ter seu impacto avaliado. Segundo ele, esta
prática deve começar cedo, ainda na escola básica. Por isso, Grajew é
radical ao defender uma mudança curricular para a educação escolar, já que
hoje valores como competição, individualismo, consumo desenfreado e
desconfiança mútua se sobrepõem à prática cidadã.
- Nos aeroportos cheios o que vemos são filas de pessoas, entre elas velhos,
crianças e adultos, esperando para serem revistados. Todos desconfiam de
todos. O "outro" é a maior ameaça.
O sistema de competição nas escolas é o início disso - disse Grajew.
Gilson Maurity, presidente da Lubrizol e diretor da Junior Achievement, vai
além e diz que só a educação pode transformar a sociedade.
- A escola não deveria dar uma formação acadêmica apenas, mas também ética.
O grande movimento de mudança na humanidade vem da relação entre seus
indivíduos e do respeito pela vida humana. A conduta de cada um nada mais é
do que a ética - afirmou Maurity, após destacar que todo o trabalho da
Junior Achievemet segue este princípio.
Com humor, o antropólogo Roberto Da Matta, que é professor da PUC-Rio,
elevou a discussão para a dimensão da condição humana ao citar a obra 'As
you like it'(em português "Como gostais"), de William Shakespeare. A peça
trata da história de Rosalind, uma moça que se traveste de homem para saber
segredos do sexo oposto e, assim, conquistar seu amado. Da Matta lembrou que
o livro traz nas primeiras páginas os seguintes dizeres: "O mundo não foi
feito por nós". Para ele, a frase nos remete à dificuldade de nós, seres
humanos, encontrarmos soluções para os nossos dilemas éticos simplesmente
pelo fato de o planeta nos ter sido dado.
- O mundo é um palco e nós somos atores que têm momentos de entrada e
saída - comentou.
O encontro foi parte do projeto "Vamos Falar de Ética", que a Junior
Achievement desenvolve com jovens do Ensino Médio de escolas estaduais do
Rio de Janeiro. O objetivo do programa é formar uma consciência ética.
A metodologia envolve a promoção de debates e atividades práticas nas
escolas com o intuito de incentivar os jovens a refletir sobre o seu papel
como cidadão. O trabalho já reúne uma equipe de cerca de 400 voluntários e
pretende atingir cinco mil jovens.
Para se inscrever como voluntário: jabrasil.org.br
Cissa Guimarães, foi abandonado por Rafael Bussamra, que o atropelou no
Túnel Acústico, na Gávea, interditado na ocasião pela prefeitura para
circulação de carros. O fato chamou atenção do público pela tragédia em si,
mas também pelo episódio de corrupção praticada pela família do atropelador,
que pagou R$ 1 mil a policiais que pararam o carro logo após o acidente.
Essa história aconteceu no Rio de Janeiro e serviu como pano de fundo para o
debate sobre ética que a ONG Junior Achievement promoveu, na semana passada,
com apoio do GLOBO e do EXTRA. Três dos quatro debatedores convidados
fizeram referência ao caso como um exemplo de escolhas éticas com as quais
esbarramos no cotidiano.
"Alguém aqui chamaria a polícia em vez de ligar para os pais?", provocou o
antropólogo Roberto da Matta ao comentar a reação de Bussamra.
- Em qualquer outro país do mundo, a primeira ligação seria para a polícia,
mas aqui, não só não acreditamos na polícia, como há uma prática de subornar
para escapar das regras da lei - disse o antropólogo.
Num contexto mais amplo, a discussão do encontro, mediado pela editora do
Razão Social, Amelia Gonzalez, girou em torno do dilema que enfrentamos para
optar por soluções mais sustentáveis em prol da preservação da vida no
planeta. Foi o tom da fala de Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos,
para quem "ética é a forma com que se age, é o que determina nossas
escolhas". Para ele, a questão que se impõe hoje é decidirmos se vamos ou
não acreditar nos cientistas: - Eles nos dizem que, se não mudarmos nossa
forma de viver, a espécie humana corre o risco de ser extinta neste século.
O que está em jogo, então, são os nossos filhos, netos. Hoje, o crescimento
é sem limites e a cultura é da competição. Somos diferentes de outros seres
vivos, a nós foi dada a faculdade de fazer escolhas. E fazer escolha é
ética - disse Grajew.
O antropólogo Roberto da Matta e a mestra em ciência da informação e
fundadora da empresa X-Brasil Marta Porto trouxeram também para o debate
situações em que nos deparamos com nossos limites éticos no cotidiano. Autor
do recém lançado livro "Fé em deus e pé na tabua", Da Matta citou a conduta
no trânsito como exemplo da incoerência praticada pelo brasileiro
diariamente.
- Quando estamos parados no sinal e precisamos, por exemplo, pegar um avião,
achamos que nosso motivo é suficiente para cometer a infração de avançá-lo.
No Brasil não temos falta de ética, mas sim muitas éticas: uma da família,
uma do homem, uma da mulher etc. Não há uma única ética permeando espaços
públicos, como o trânsito, que deixe os indivíduos em igualdade de
condições. Quando alguém respeita a lei, temos que achá-lo um herói e não um
babaca - comentou Roberto Da Matta.
Para ele, a consequência de uma sociedade que convive com tantas éticas
chegou ao limite no caso do atropelamento com morte de Rafael Mascarenhas.
Da Matta diz que o que valeu, neste caso, foi uma ética da família.
- O rapaz que atropelou não ligou para a polícia, mas para o papai e a
mamãe.
O caso também foi emblemático para a jornalista Marta Porto, uma das
criadoras do primeiro escritório da Unesco no Rio de Janeiro. Para ela, o
principal debate dessa história trágica não tem a ver com o pagamento da
propina aos policiais, mas com a ausência de indignação, tanto da família do
atropelador quanto da sociedade.
- Não é a discussão da propina que me interessa. É o silêncio daquele grupo
de pessoas que participou da ação. A escolha ética surge no momento em que,
após atropelar uma pessoa no túnel, opta-se por abandoná-la no local em vez
de fazer algo para que a pessoa não morra e arcar com as consequências. A
possibilidade da ética reside no espaço entre o sujeito pensar e fazer -
disse.
É a falta de sentimentos primários entre os sujeitos que hoje, na opinião
dela, permite que atitudes contrárias ao bem comum sejam praticadas. Marta
diz que atualmente nos faltam "afetos" no sentido de sabermos o que toca
cada um de nós: - Sem sentimento, não há ética. A pessoa precisa ter, em
primeiro lugar, um afeto que pode ser o senso de justiça, a vergonha ou o
remorso. Uma sociedade que perde a sua capacidade de indignação não é capaz
de despertar esses sentimento iniciais e tornase um perigo. Como despertamos
o afeto em uma sociedade que cada vez mais se silencia diante de questões
pequenas, médias e grandes. A passividade, o tédio e o silêncio não são
atitudes éticas. A sociedade brasileira está diante de um desafio que é
tratar as situações com a dimensão afetiva que deveria ter se quiser
realizar mudanças - falou a jornalista.
Oded Grajew acredita, porém, que qualquer movimento de transformação social
deve passar, necessariamente, pelas corporações, já que nelas reside o
poder.
- Quem manda hoje no Brasil são as empresas, por isso qualquer tipo de
mudança tem que passar pelo mundo empresarial. Elas têm recursos
financeiros, tecnológicos e poder político.
Se não mexermos neste sistema, nada vai mudar. O financiamento de campanhas
nas eleições, por exemplo, precisa mudar, pois cerca de 70% a 80% vêm de
caixa dois de empresas que não querem declarar o investimento.
A maioria dos políticos são representantes de empresas que financiam suas
campanhas. Quando são eleitos, não pensam nas necessidades da população mas
em retribuir aos financiadores - apontou Grajew a uma plateia atenta de
cerca 60 pessoas.
O empresário ressaltou ainda que atualmente não faltam ferramentas para uma
empresa agir de maneira ética e sustentável.
Para Grajew, é fundamental que os gestores reflitam a serviço de quê estão
trabalhando e direcionando seus talentos.
Toda decisão deve, antes, ter seu impacto avaliado. Segundo ele, esta
prática deve começar cedo, ainda na escola básica. Por isso, Grajew é
radical ao defender uma mudança curricular para a educação escolar, já que
hoje valores como competição, individualismo, consumo desenfreado e
desconfiança mútua se sobrepõem à prática cidadã.
- Nos aeroportos cheios o que vemos são filas de pessoas, entre elas velhos,
crianças e adultos, esperando para serem revistados. Todos desconfiam de
todos. O "outro" é a maior ameaça.
O sistema de competição nas escolas é o início disso - disse Grajew.
Gilson Maurity, presidente da Lubrizol e diretor da Junior Achievement, vai
além e diz que só a educação pode transformar a sociedade.
- A escola não deveria dar uma formação acadêmica apenas, mas também ética.
O grande movimento de mudança na humanidade vem da relação entre seus
indivíduos e do respeito pela vida humana. A conduta de cada um nada mais é
do que a ética - afirmou Maurity, após destacar que todo o trabalho da
Junior Achievemet segue este princípio.
Com humor, o antropólogo Roberto Da Matta, que é professor da PUC-Rio,
elevou a discussão para a dimensão da condição humana ao citar a obra 'As
you like it'(em português "Como gostais"), de William Shakespeare. A peça
trata da história de Rosalind, uma moça que se traveste de homem para saber
segredos do sexo oposto e, assim, conquistar seu amado. Da Matta lembrou que
o livro traz nas primeiras páginas os seguintes dizeres: "O mundo não foi
feito por nós". Para ele, a frase nos remete à dificuldade de nós, seres
humanos, encontrarmos soluções para os nossos dilemas éticos simplesmente
pelo fato de o planeta nos ter sido dado.
- O mundo é um palco e nós somos atores que têm momentos de entrada e
saída - comentou.
O encontro foi parte do projeto "Vamos Falar de Ética", que a Junior
Achievement desenvolve com jovens do Ensino Médio de escolas estaduais do
Rio de Janeiro. O objetivo do programa é formar uma consciência ética.
A metodologia envolve a promoção de debates e atividades práticas nas
escolas com o intuito de incentivar os jovens a refletir sobre o seu papel
como cidadão. O trabalho já reúne uma equipe de cerca de 400 voluntários e
pretende atingir cinco mil jovens.
Para se inscrever como voluntário: jabrasil.org.br
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